Soluções para problemas complexos exigem políticas integradas e baseadas em experiências comprovadas de sucesso
“País desenvolvido não é onde o pobre tem carro, é onde o rico anda de transporte público.” A frase, atribuída ao humorista e entrevistador Jô Soares, resume com ironia e lucidez um dos grandes dilemas da vida urbana contemporânea: o transporte público como pilar do desenvolvimento social. Mais do que um jogo de palavras espirituoso, o pensamento de Jô nos obriga a refletir sobre como construímos nossas cidades, quais símbolos de progresso escolhemos valorizar e que políticas públicas podem transformar essa visão em realidade.
O debate sobre mobilidade urbana é um dos melhores exemplos de como as políticas públicas são questões complexas (wicked problems), sem soluções simples, porque envolvem múltiplos fatores que se entrelaçam: transporte, segurança, lazer, urbanismo, educação e cultura. Esse fenômeno é exarcebado quando falamos de problemas sociais, porque qualquer resposta linear ignora a profundidade da realidade.
Neste artigo, argumento que a melhoria da mobilidade urbana, seja pelo transporte público, seja pela mobilidade ativa (bicicletas e caminhadas), depende de políticas públicas interseccionais, capazes de atuar não apenas sobre infraestrutura, mas também sobre a sensação de segurança. Para isso, trago um exemplo inovador do Piauí: o programa de recuperação de celulares roubados, que já virou referência nacional e pode servir como peça-chave em uma política integrada de mobilidade e segurança.
A complexidade da mobilidade urbana
O transporte público não é apenas uma questão de ônibus, metrô ou tarifa. Ele envolve uma rede de elementos que precisam funcionar ao mesmo tempo: previsibilidade, conforto, preço acessível, infraestrutura adequada e, sobretudo, segurança.
Basta pensar: o que adianta termos ônibus modernos, ar-condicionado e tarifas subsidiadas, se a pessoa sente medo de caminhar dez minutos à noite até o ponto? A resposta é simples: ela não vai usar o transporte coletivo. Vai recorrer ao carro particular ou até evitar sair de casa.
Esse raciocínio nos leva à ideia de interseccionalidade das políticas públicas: a política de transporte não pode ser pensada sem segurança, urbanismo, iluminação pública, emprego e lazer. É aqui que entra o humor sombrio do Brasil contemporâneo: o meme dos “dois homens em uma moto”. Mais do que piada, a expressão virou uma síntese cultural da insegurança urbana. Basta ouvir o barulho de uma moto se aproximando que muitos brasileiros já associam imediatamente ao risco de assalto. Essa sensação, embora caricata, influencia diretamente como ocupamos o espaço público.
Ou seja, mesmo que tenhamos um transporte público tecnicamente eficiente, sem políticas de segurança que garantam confiança ao usuário, sua adesão será limitada.
O Piauí como laboratório de políticas públicas
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É nesse contexto que a experiência do Piauí merece atenção. O estado, muitas vezes visto de fora como periférico no debate nacional, vem surpreendendo ao implementar um programa inovador de combate a roubos e furtos: o protocolo de recuperação de celulares.
Como funciona?
O sistema conecta registros de ocorrências, operadoras de telefonia e forças de segurança para rastrear e recuperar celulares roubados. A tecnologia permite identificar aparelhos irregulares, bloqueá-los e devolvê-los a seus donos.
Resultados impressionantes
De acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Piauí, mais de 13 mil celulares já foram recuperados e entregues a seus proprietários (SSP-PI, 2025). Esse número impressiona não apenas pela escala, mas pelo impacto simbólico: em um país onde o celular é quase uma extensão da vida pessoal e profissional, devolver esse item representa devolver dignidade, autonomia e confiança às pessoas.
Expansão nacional
O sucesso foi tamanho que o ministro Lewandowski defendeu que o protocolo seja ampliado para todo o Brasil (CNN Brasil, 2024). O programa já foi adotado em outros estados, mostrando que políticas locais podem inspirar soluções de alcance nacional. Hoje o Piauí é o estado mais seguro do nordeste.

Mobilidade ativa e segurança
Outro ponto que conecta segurança e mobilidade é a chamada mobilidade ativa: caminhadas e bicicletas. Esses meios de transporte, além de sustentáveis, têm efeitos positivos sobre a saúde e a vitalidade urbana. Cidades cheias de pedestres e ciclistas tendem a ser mais seguras, porque ruas ocupadas reduzem oportunidades para o crime.
Mas, novamente, a sensação de segurança é fundamental. Sem calçadas bem iluminadas, ciclovias protegidas e confiança de que não se será assaltado, poucas pessoas optam por caminhar ou pedalar. A política pública precisa, portanto, ir além da infraestrutura física: ela precisa construir confiança social.
Piauí: metade da solução em perspectiva
Dedicamos aqui metade do artigo ao Piauí não por acaso: o caso é emblemático. Ele mostra que políticas públicas inteligentes podem nascer fora do eixo tradicional de poder e ainda assim inspirar o país inteiro.
O protocolo de recuperação de celulares não resolve sozinho a mobilidade urbana. Mas ele aponta o caminho: é ao articular diferentes dimensões da vida urbana que se constroem soluções de impacto. No médio prazo, programas assim podem aumentar a adesão ao transporte coletivo, estimular a mobilidade ativa e reduzir o uso do carro particular.
É também uma lição de como problemas complexos não se resolvem com respostas simplistas. A lógica “coloque mais ônibus na rua e o povo vai usar” ignora o fator humano: ninguém usará o transporte se tiver medo de perder o bem mais valioso do dia a dia, o celular, no trajeto até o ponto.
A frase de Jô Soares, repetida tantas vezes, segue sendo atual: o desenvolvimento urbano não se mede pelo número de carros, mas pela confiança com que até os ricos usam o transporte público. Para chegarmos lá, precisamos abraçar a complexidade das políticas públicas.
O exemplo do Piauí mostra que segurança e mobilidade estão profundamente conectadas. Ao reduzir roubos de celulares, o estado não apenas combateu o crime, mas devolveu às pessoas a confiança de circular pelas ruas. Essa confiança é o que sustenta qualquer sistema de transporte coletivo ou mobilidade ativa.
Se quisermos cidades realmente desenvolvidas, precisamos aprender com esses exemplos: pensar transporte junto com segurança, urbanismo, lazer e inclusão social. Só assim superaremos o medo dos “dois homens em uma moto” e construiremos uma urbanidade em que caminhar, pedalar ou pegar ônibus seja não um ato de coragem, mas uma escolha natural, segura e coletiva.
Por Erick Elysio
🧾 Referências
- CNN Brasil — Entenda o protocolo do Piauí para recuperar celulares roubados; Lewandowski quer um para o país inteiro.
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/entenda-o-protocolo-do-piaui-para-recuperar-celulares-roubados-lewandowski-quer-um-para-o-pais-inteiro/#goog_rewarded - Nexo Jornal — Relação entre segurança e mobilidade urbana.
https://www.nexojornal.com.br/seguranca-relacao-mobilidade-urbana - SSP-PI — Governo do Piauí entrega mais de 180 celulares a seus proprietários; estado já recuperou mais de 13 mil aparelhos.
https://www.ssp.pi.gov.br/governo-do-piaui-entrega-mais-de-180-celulares-a-seus-proprietarios-estado-ja-recuperou-mais-de-13-mil-aparelhos/ - Comunitas — Chico Lucas detalha estratégia do Piauí para reduzir roubos de celulares e violência.
https://comunitas.org.br/chico-lucas-detalha-estrategia-do-piaui-para-reduzir-roubos-de-celulares-e-violencia/ - Estadão — Mobilidade para que? Exemplos internacionais de mobilidade urbana.
https://mobilidade.estadao.com.br/mobilidade-para-que/5-paises-que-sao-exemplos-quando-o-assunto-e-mobilidade-urbana/ - X / Twitter — Post de FariaLimaElevat sobre o tema.
https://x.com/FariaLimaElevat/status/1556044387125272576 - Instagram — Publicação relacionada (post visual).
https://www.instagram.com/p/DMgT51pS30_/






































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