Creche Municipal Castelinho, Rocinha (RJ). (Foto: Daniel Guedes)

Infraestrutura urbana é arma antifacção (e a ciência comprova)

Nesta semana os complexos da Penha e do Alemão no Rio de Janeiro vivenciaram uma megaoperação policial de combate à facção criminosa Comando Vermelho. O combate ao crime organizado é um debate complexo e sem solução fácil. A depender do alinhamento político e da visão de mundo que se tem, a reação pode ser mais emocional do que racional, tendência natural de todo ser humano quando se toca em uma ferida. Ao buscar pesquisas acadêmicas, encontramos algumas pistas importantes de ações racionais necessárias para o Brasil enfrentar este problema. Entre diversas ações integradas, encontra-se o investimento em infraestrutura urbana e serviços públicos como parte basilar na construção de uma sociedade moderna menos violenta e no esvaziamento do poder de grupos criminosos organizados.

Registros nos complexos da Penha e do Alemão (RJ). (Foto: Bruno Itan)

Infraestrutura e violência

Pesquisas apontam que a ausência estatal em determinados espaços de convivência social (expressa pela incapacidade de prover segurança e bens públicos essenciais) é um fator estrutural no surgimento do crime organizado. Grupos criminosos tendem a ocupar essa lacuna provendo “proteção” à população local e governança informal [1]. Por exemplo, estudos sobre a história da máfia siciliana na Itália relacionam sua origem à ausência de autoridade estatal no fim do século XIX: proprietário rurais, desprotegidos contra bandos armados, passaram a contratar proteção privada de grupos que evoluíram em organizações mafiosas [1]. Outro exemplo pode ser visto no Japão com a atuação da Yakuza, que historicamente ocupou um status pseudo-legal. No cenário pós-guerra ela atuou ajudando a “manter a ordem” nas ruas e se envolvia em negócios não só ilícitos, mas também construiu empreendimentos legais [6].

No contexto urbano latino-americano, observa-se dinâmica semelhante, no qual a ausência ou precariedade de infraestrutura e serviços básicos criam terreno fértil para o crime se enraizar. O sociólogo Luiz Antônio Machado, pioneiro nos estudos da sociologia urbana e da violência no Brasil, argumentava que uma entidade só exerce poder legítimo se for capaz de fornecer serviços à população [2]. Quando o Estado cumpre esse papel, ele não deixa terreno fértil para grupos criminosos oferecerem serviços (como segurança clandestina ou até monopólio de serviços, como gás e internet), minando a aceitação e proliferação local.

Saneamento Básico

O saneamento básico (incluindo acesso à água potável, coleta de esgoto, manejo de lixo e drenagem) é um indicador-chave de desenvolvimento urbano. Uma análise recente focada em cidades brasileiras sugere que a precariedade de infraestrutura de saneamento agrava a violência urbana [3]. Embora seja difícil isolar o efeito causal do saneamento na criminalidade, a literatura defende que promover o direito ao saneamento contribui também para promover segurança pública.

Esgoto a céu aberto na Rocinha (RJ). (Foto: Michel Silva)

Iluminação Pública

A iluminação pública é outro elemento da infraestrutura urbana apontada como influenciadora nos índices de criminalidade. Ao prover um espaço público mais bem iluminado, ocorre uma redução nas oportunidades para delitos. Em espaços mais bem iluminados ocorre uma vigilância natural (mais “olhos nas ruas”) e, assim, se diminui o anonimato de criminosos. Uma meta-análise da Campbell Collaboration, englobando 13 programas de melhoria da iluminação, concluiu que a iluminação aprimorada provocou em média uma redução de 21% na criminalidade total nas áreas observadas [4]. No entanto, o impacto sobre crimes violentos nem sempre é significativo, indicando que iluminação, por si só, não resolve conflitos mais profundos, exigindo outras abordagens combinadas, como policiamento ou mediação da violência [4].

Transporte e Acessibilidade

Outro elemento da infraestrutura urbana são os meios de transporte disponíveis nas cidades. Melhorar o acesso viário e o transporte nas áreas populacionais isoladas tem um duplo efeito: facilita a atuação policial e a chegada dos serviços públicos. Além disso, conecta os moradores a melhores oportunidades de emprego, educação e lazer, diminuindo a exclusão social que favorece a atratividade das atividades criminosas.

Em Medellín (Colômbia), por exemplo, a implementação de teleféricos e escadas rolantes ligando comunas antes isoladas aos centros urbanos foi acompanhada de queda na violência local, pois a mobilidade ampliada trouxe turistas, investimento e presença estatal, embora seja difícil atribuir relação causal direta, já que veio junto de políticas de segurança e inclusão social. Por outro lado, estudos também notam que melhorar estradas pode redistribuir o crime se não houver vigilância adequada. Um trabalho sobre a expansão de rodovias nos EUA encontrou aumento de crimes patrimoniais em áreas conectadas por autoestradas, a menos que houvesse recursos policiais suficientes [5]. Ou seja, infraestrutura de transporte por si só não garante redução da violência, mas quando planejada em conjunto com políticas de segurança e desenvolvimento, tende a enfraquecer a economia do crime organizado ao romper enclaves isolados e elevar o custo de atuação de grupos ilícitos.

Educação, Saúde e Assistência Social

Entre os serviços públicos, educação talvez seja o vínculo mais bem documentado com a redução da criminalidade. Diversos estudos em vários países mostram que aumentar a escolaridade da população diminui significativamente as taxas de crime. A educação eleva as oportunidades do cidadão no mercado de trabalho formal e seus valores cívicos (respeito, honestidade, solidariedade, justiça), dadas as devidas diferenças culturais.

Pesquisas no Brasil identificam correlação entre baixa escolaridade e altas taxas de violência. Uma tese da USP encontrou que estados com maior evasão escolar registraram aumentos notórios nos índices de criminalidade, indicando que escolas mantêm os jovens afastados do crime e oferecem perspectivas legais de ascensão [7]. Em síntese, escolas de qualidade funcionam como ferramenta de prevenção ao afastar a juventude do ócio e do recrutamento por gangues, ao construir capital humano que abre portas no mercado de trabalho formal e ao difundir normas pró-sociais.

Quando se trata de saúde e assistência social, o apontamento é que elas ajudam a criar maior coesão social, como também a reforçar a confiança dos moradores no Estado. Os efeitos são múltiplos: tecido social mais resiliente e menos suscetível à dominação do crime organizado; facilita ações preventivas contra drogas; e facilita o atendimento a jovens em situações de risco e vulnerabilidade [1].

Creche Municipal Castelinho, Rocinha (RJ). (Foto: Daniel Guedes)

O desafio brasileiro

No Brasil, o desafio de quebrar o poder de facções criminosas se mostra como um trabalho integrado que deve envolver ações contínua que vão além da ação policial e de inteligência, passando por melhorias no sistema prisional e de reeducação, até investimentos em infraestrutura e inclusão social, de modo a minar as oportunidades deixadas ao poder paralelo de facções criminosas.

Programas como o Favela-Bairro, criado em 1994, urbanizaram comunidades carentes com saneamento, vias, áreas de lazer e iluminação, buscando integrar esses territórios à cidade. Embora programas como este melhorem indicadores de qualidade de vida, a ausência de policiamento comunitário consistente, permite a continuidade da atuação territorial de grupos criminosos, inclusive, cooptando os benefícios de infraestrutura, como a criação de monopólios de serviços de internet e fornecimento de gás.

A lição que fica é que infraestrutura e serviços públicos são essenciais para se alcançar uma solução sustentável no longo prazo, mas sozinha ela não basta. Deve vir acompanhada de governança estatal legítima e a manutenção de serviços. A busca de uma solução para o complexo problema da violência no Rio de Janeiro exige estratégia robustas e integradas de várias frentes. O tratamento da segurança pública deve ser inserido como serviço público essencial e contínuo, juntamente como os investimentos consistentes em saneamento, educação, saúde e assistência social.

Referências:

[1] The root causes of organised crime | VoxDev

[2] Urban Public Works, Drug Trafficking and Militias: What Are the Consequences of the Interactions Between Community Work and Illicit Markets? | Journal of Illicit Economies and Development

[3] SANEAMENTO BÁSICO E VIOLÊNCIA: UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE INFRAESTRUTURA URBANA E SEGURANÇA PÚBLICA

[4] Iluminação Pública | Plataforma de Evidencias

[5] An Unintended Consequence of the Interstate Highway System

[6] Top yakuza group in Japan promises ‘no more trouble’ | The Star

[7] Dois ensaios acerca da relação entre criminalidade e educação

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Daniel Guedes é engenheiro civil formado pela Universidade de Brasília (UnB), mestrando em Economia pela mesma instituição e engenheiro do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), na Área de Soluções de Infraestrutura. Com experiência no setor público e privado, já atuou no Serviço de Limpeza Urbana do DF e na Prime Projetos, sempre com foco em planejamento urbano, gestão contratual e desenvolvimento de soluções para o setor. Na coluna InfraEmFoco, compartilha análises, reflexões e bastidores sobre o papel da infraestrutura no crescimento econômico e na melhoria da qualidade de vida, trazendo uma visão técnica em linguagem acessível.